Vi um filme com a Sô esse fim de semana. Up - altas aventuras. O filme é fofo. Desenho animado, de um velhinho que saí pelo mundo com sua casa presa em balões de gás hélio. Totalmente surrealista, mas divertidinho e bom pra passar o tempo. Além disso, estava com saudade de sair com a Sô. Hoje, fui a dentista ver se me livrava finalmente do clareamento: mas não foi hoje ainda. Essas coisas não teriam relação nenhuma, e talvez não tenham mesmo, mas algo me chamou atenção nas duas ocasiões.
No domingo, voltando para casa, o ônibus parou num cruzamento e esperou o sinal. Enquanto estava parado, olhei pela janela e vi um garoto. Bermuda jeans meio surrada e suja de terra. Pés descalços, uma camiseta de propaganda política. Olhei para ele meio como quem olha a paisagem. Era um menino bonito, que não podia ter mais de 12 anos. O que me surpreendeu foi que, ao reparar que eu o olhava, ele não desviou o olhar. Os cariocas que estão lendo o texto podem ter visualizado um garoto meio maloqueiro, encarando com agressividade, mas não foi esse o olhar que eu vi nesse garoto específico. Ele simplesmente permaneceu ali, sem movimentos. E se vocês acreditarem que não estou numa onda de super-interpretação, vou dizer também que os olhos dele emanavam um certo pedido ou revolta silenciosa. Como se ele mesmo soubesse da injustiça que era ele estar ali, descalça, e eu estar dentro do ônibus confortavelmente voltando para casa depois de uma seção de cinema.
Tive vontade de dizer algo, mas acabei engolindo em seco, e o barulho do ônibus fez com que o menino retomasse seu destino. E eu o meu. Cheguei em casa ainda com os olhos dele na cabeça, e meio de mal com o mundo: como diria Vinícius "Às vezes quero crer mas não consigo, é tudo uma total insensatez". Acho injusto. E não consigo passar muito tempo sem pensar nisso.
Mas dormi, a sensação foi embora. Ou quase. E hoje acordei para um dia normal. E no meio do meu dia normal estava a consulta com a Dr.Heloiza. Saí do consultório e uma chuva forte fazia com a rua tivesse dois dedos de água, e as pessoas sem guarda-chuva corressem. Os carros passavam jogando água nos pedestres, que xingavam. E eu abri meu guarda-chuva com imagens do Rio de janeiro e desci a rua até o ponto para voltar para casa. Mesmo com ele aberto a calça ficou molhada até um pouco acima do joelho, porque ventava e os pingos mudavam de direção.
O ponto de onibus, por causa do vento, não chegava a ser um abrigo. E lá havia um menino. Cheguei no ponto meio sem atenção e olhei para o ônibus que vinha sem conseguir definir qual era. "É o Circular", me disse o menino. E eu reparei então na existência dele. Reparei também que ele estava tirando as meias e o tênis. "Por que está tirando o tênis?". Ele olhou, meio envergonhado, e enquanto guardava o tenis numa sacola de supermercado respondeu "Ainda nem acabei de pagar. Vem essa chuva, ele fica todo sujo, e mesmo que a gente lava e não fica igual. Logo no dia que eu decidi usar ele. Ainda nem acabei de pagar. O pé a gente lava e fica igual, moça". Achei impressionante o carinho com o par de tênis. O pé a gente lava e fica igual. E ele ter repetido duas vezes "ainda nem acabei de pagar".
Se fosse milionária, ou pelo menos mais rica, na hora teria tirado do bolso um dinheiro e dado para ele acabar de pagar o tênis. Meu adidas, que me deixou muito feliz quando fiz 19 anos, estava todo sujo e molhado no meu pé. Feio, mesmo. Fiquei pensando que o tênis desse menino vai estar lindo mesmo daqui a um ano. A gente não dá valor no que tem, essa é a verdade. Eu mesma, não dou.
Não falo o suficiente aos meus amigos o quanto me são importantes:essenciais. Não cuido o suficiente das minhas coisas, mesmo as que gosto muito. Não ligo o suficiente para minha mãe. Não escrevo as cartas que gostaria, apesar dos pesares, a minha avó. Não cuido nem de mim mesma o suficiente:não me alimento como deveria, não faço exercícios como deveria, e fujo de médicos como diabo da cruz.
E acho, de coração, que o Brasil tem coisas demais a mudar.